Falando com o Lineu

É muito difícil traduzir a saudade em palavras e mais difícil ainda é transportá-las para o papel. O mais fácil para mim é, com certeza, falar direto com você, meu amigo e professor Lineu.

No presente, como se estivesse aqui entre nós.
Assim é mais fácil. Bem mais fácil. Você estará sempre entre nós, bem vivo, o que nos fará conjugar sempre cada verbo no presente e até no futuro.

No futuro, porque você nos ensinou a sonhar e assim como uma bússola apontou para tantas pessoas o norte.

Estou falando de você Lineu, que passou a vida ensinando, orientando, compartilhando conhecimentos e sabedoria. Nos ensinou a amar, amar o próximo como a si mesmo, e a tão sonhada justiça que poderia vir da socialização das riquezas, diminuindo os abismos das diferenças da sociedade.

Pessoas como você, quando se vão, nos surpreende com a imensidão da obra que deixa inacabada. Tenho certeza que nem mesmo você tem idéia do tamanho de sua própria construção. Isso acontece nas histórias dos grandes homens.

Agora, nos resta viver com um misto de saudade, de vazio e de tristeza. Alguma coisa que parece ter uma cor cinza... E como você mesmo disse certa vez,

“a cor cinza de uma saudade eterna”.

Estava aqui refletindo um pouco. Será que Deus, diante do desafio de continuar a sua infinita obra, precisou vir buscá-lo aqui? Será que Deus precisava de alguém tão especial para alguma missão também tão especial? A nossa Uberaba sempre foi um berço de pessoas notáveis, e tantos outros já se foram para compor uma verdadeira seleção ao lado de Deus Pai. É, acho melhor pensar assim... Fica um pouco mais leve a saudade. E que saudades!

Sabe, Lineu, a vida de tantos outros colegas e a minha tiveram com a sua presença um enorme significado. Vivemos nossos melhores momentos. Aprendemos a ser homens e homens médicos, bem diferentes da idéia mais contemporânea de homem que recebe diploma de médico. Aprendemos a ser sensíveis como você, que nos ensinou que o paciente é a razão de ser do médico. Que nos ensinou que a fortíssima relação médico/paciente é a mais forte das relações humanas. É, acima de tudo, uma relação sagrada. Com isso, aprendemos a chamar cada paciente, independentemente de sua classe social, pelo seu próprio nome e a conhecer a sua história, bem ao jeito “ Lineu de ser”.

Os seus ex-alunos, professor Lineu, sempre fizeram a diferença em todos os cantos do Brasil e nós, com muito orgulho, contávamos de onde vinha essa lição. Vinha de Uberaba, de um médico de ascendência sírio-libanesa, simples, magro, um pouco feio e um pouco desajeitado. Um médico que falava olhando nos olhos, gesticulando e com absoluta segurança em cada uma das suas afirmações. Um médico que se dedicava até a separar caixinhas de amostras grátis de remédios para as pessoas mais pobres. Um médico que foi um misto de humanista, poeta, comunicador, articulista, escritor, cientista, pesquisador, conselheiro, e, mais do que tudo isso, um amigo leal e solidário.

Ainda ouço você me chamando de Paulinho, e também me recordo perfeitamente quando você disse que ao final de uma consulta, o paciente deveria sentir “que o médico é seu amigo, que o médico é honesto, que o médico se mostrou preocupado em resolver seus problemas, e que faria tudo que estivesse ao seu alcance para solucioná-los”.

É meu velho Lineu, passaram-se 30 anos desde que mudei para São Paulo, para fazer residência médica no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. Seus ensinamentos ainda são atuais para os dias de hoje. Quando aqui cheguei, em 1976, sua história já era contada pelos corredores do Dante, e você era conhecido como o “Lineu da turma de 1967, aquele que retornou para Uberaba para viver o seu sonho”. O sonho compartilhado com outros heróis, de transformar uma pacata cidade mineira em Centro de Cardiologia.

Em 1975, juntamente com Romeu Sérgio, Dino Zorzo e Yoshio, escrevemos “Temas de Cardiologia”, em cujo prefácio você diz: “Nestes tempos difíceis, em que o inglês aterroriza, os preços dos livros abalam os mais abastados bolsos e as incorreções das apostilas fazem estremecer os mais alicerçados conceitos da medicina, nos animam a publicar uma obra para servir ao estudante”.

Lembro-me ainda do ofsete e da máquina Remington, novinha, novinha. Agora, a internet e o inglês já são de domínio da maioria. Na dedicatória você escreveu: “À Maria, companheira de todas as horas, aos meus filhos Lineu Domingos, Adriana e Andréa, fontes permanentes de inspiração e de força. À Beethoven, Bach, Brahms, Sibelius, Tchaikovsky e Cesar Frank, cujas obras nos fizeram companhia por longas madrugadas”.

Foi assim Lineu, que aprendemos que homens de sua importância reconhecem a família como o pilar de sustentação da sociedade e da vida. A música erudita, a beleza de cada um dos clássicos, por mais complexo que parecia, poderia ser ensinada para nós, estudantes atentos daquela época, embriagados com a paixão com que acompanhava cada uma dessas músicas. Hoje, elas se misturam com você, com nossas recordações, tudo, num só hino!

É muita saudade, mas não posso deixar de contar que você ao ouvir as músicas de Roberto Carlos, bradava: “Esse cara canta tudo o que eu gostaria de ter escrito”. É, e o “rei” Roberto Carlos disse: “Quero ter um milhão de amigos”. Você não escreveu Lineu, mas tem um milhão de amigos. Melhor ainda, você os conquistou.

Queria escrever um pouco mais Lineu. É pena que não dê. A saudade é muita e a visão fica embaralhada com lágrimas que não consigo conter. Tenho agora a missão de manter viva a sua história, sem precisar exagerar. Cada um de seus amigos terá “causos” e casos para contar. No futuro vai ser lenda.

Você é feliz. Fez por merecer. Você conseguiu materializar no Lineuzinho, Adriana e Andréa, três médicos com um só destino: carregar a sua bandeira e continuar a viver seus sonhos. Ah! Lineu, ontem estive de novo no Dante Pazzanese para ver a placa que você pendurou recentemente, numa homenagem que você chamou “O Coração do Dante”. Sabe como é, fui matar a saudade. Ela está lá. No mesmo lugar. Li mais algumas vezes e você termina a homenagem assim: “Num outro dia, estive no Dante. Mais uma vez, revi corações. Concretamente os revi. Nos prédios novos e antigos, nos progressos, na noite de gala, nas placas que virei a ser, no empurrão amistoso, nos abraços, nos olhares, nos sorrisos, nos discursos... e na arborizada rua VIII de Novembro, cujo asfalto, após 35 anos, ainda faz parte dos meus pés”.

Que coisa, Lineu! Parece até que você sabia.

N.E.: O professor e médico mineiro Lineu José Miziara (1942-2005) foi titular concursado de Farmacologia, professor adjunto de Cardiologia, Docente da Universidade Federal de Uberlândia e da Faculdade do Triângulo Mineiro. Foi responsável pelo curso de Farmacologia Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de Uberaba. Ocupou a cadeira 38 da Academia de Letras do Triângulo Mineiro.

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